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Punto Cero

versão impressa ISSN 1815-0276versão On-line ISSN 2224-8838

Punto Cero v.15 n.20 Cochabamba  2010

 

 

 

A imprensa alternativa como resistência à indústria jornalistíca resultante do processo de neocolonízação

 

The alternative press as resístance to the newspaper industry resulting from the process of neo-colonization

 

 

Alexandre Barbosa

Brasileiro, doutorando em Ciênicas da Comunicação pela ECA-USP, mestre em Ciências da Comunicação (ECA-USP), especialista em Jornalismo Internacional (PUC-SP), bacharel em Jornalismo (UMESP). Professor universitário e coordenador do curso de Jornalismo da Universidade Nove de Julho e idealizador do site Latinoamericano.jor (www.latinoamericano.jor.br).

alexandre@latinoamericano.jor.br

 

 


Resumo

Este artigo mostra como o continente latino-americano foi cindido por processo históricos coloniais e neo-coloniais em regiões chamadas de "América Latina Burguesa" e "América Latina Popular", cada qual com sua imprensa orgânica. Enquanto a indústria jornalística representa o aparelho ideológico da "América Latina Burguesa", a imprensa alternativa e comunitária tenta construir um processo de contra-hegemonia como forma de resistência da América Latina Popular.

Palavras chave: imprensa alternativa da América Latina, neocolonização e imprensa


Resumen

Este artículo es resultado de la disertación de Máster en Comunicación realizada en la Universidad de São Paulo y muestra como el continente latinoamericano fue dividido, por los procesos históricos, en dos regiones que llamé América Latina Burguesa y América Latina Popular, cada una con su prensa orgánica. Mientras la prensa industrial representa el aparato ideológico de la América Latina Burguesa, la prensa alternativa y comunitaria lleva a cabo el proyecto de contra hegemonía como una forma de resistencia.

Palabras clave: prensa alternativa de América Latina, neocolonización y prensa


Abstract

This article shows how the Latin American continent has been divided by historical processes in regions called "Official Latin America" and "Popular Latin América", with their respective organic media. While the newspaper industry represents the ideological apparatus of "Official Latin America", the alternative and community press tries to build a process of counter-hegemony as a form of resistance in Popular Latin America.

Keywords: Latin American alternative press, press and neo-colonization


 

 

A América Latina, em todas as dimensões políticas, históricas e culturais não tem o espaço devido na indústria jornalística brasileira. Não se encontram nas páginas dos jornais as histórias da América Central, as músicas dos pampas argentinos, as lutas na Selva Amazônica, a fome dos descendentes maias, a culinária andina, a literatura guatemalteca, o cinema cubano, a enxada do sertanejo. Esse quadro foi comprovado na dissertação de mestrado "A Solidão da América Latina na Grande Imprensa Brasileira", defendida na USP em 2005.

Mesmo que a indústria jornalística publique material sobre América Latina, a abordagem aponta para o lado exótico, atrasado ou subalterno da região em relação ao que é considerado modelo de desenvolvimento e democracia.

Durante o primeiro mandato do presidente boliviano Evo Morales, a indústria jornalística brasileira, num misto de "patriotada" com preconceito, resistiu em identificar as razões que levaram aos processos de nacionalização dos recursos minerais bolivianos, sem procurar explicações como a secular dilapidação da Bolívia pelas nações coloniais e imperialistas. A erradicação da tuberculose em Cuba no início dos anos 2000, os processos eleitorais na Nicarágua, em El Salvador, no Equador, as reformas políticas do Uruguai, que elegeram presidentes ligados às esquerdas e as negociações entre zapatistas e o governo em Chiapas são fatos que, além de não ganharem manchete, recebem abordagem com olhar europeu ou norte-americano.

Nos jornais, rádios e tevês aparecem apenas os desastres naturais, episódios violentos, mesmo assim quando muito evidentes e de tal forma sangrentos que já despertaram a atenção da "comunidade internacional". Aparecem também os gabinetes presidenciais - reuniões de cúpulas, acordos comerciais, visitas de secretários de Estado. É como se a América Latina se resumisse apenas ao litoral e às grandes cidades. Ou, o que é mais grave, os meios de comunicação de massa assumem como América Latina apenas o que já foi chancelado pela indústria cultural hegemónica norte-americana.

 

As duas Américas Latinas

O professor Octavio lanni identifica duas Américas Latinas.

Há várias nações na nação latino-americana. Elas se mesclam e diferenciam, convivem e antagonizam, conforme a época, o jogo das forças sociais. Uma é a nação burguesa, oficial, dominante, que profere o discurso do poder, mercado, desenvolvimento progresso, produtividade, racionalidade, modernização. Outra é a popular, camponesa e operária, dispersa na sociedade e na geografia, revelando-se alternativa diferente, sociedade e comunidade, qualitativa. Mas há, em certos casos, a nação quêchua, aimara, guarani, asteca, maia, negra ou outra, de permeio às diversidades sociais, económicas, políticas, que mantêm e generalizam hierarquias, preconceitos, racismos. Às vezes, todas essas realidades aglutinam-se em distintas regiões, no âmbito do espaço nacional, de tal modo que pode haver uma nação costeira e outra serrana. Nesses casos, as diversidades organizam-se de tal maneira que as regiões digladiam-se como poderosas estruturas aparentemente autónomas; ou articulam-se sob o mando de uma nação mais poderosa. Assim se forma uma espécie de colonialismo interno. (IANNI 1993:35-36)

Ser latino-americano, sobretudo, é não ser norte-americano, anglo-saxão ou europeu. Há um conjunto de características - geográficas, históricas e sociológicas - que distinguem o sul do Rio Bravo das regiões ditas "centrais" do planeta (Europa e América anglo-saxã).

A unidade denominada América Latina é maior do que seu aspecto geográfico. "A América Latina existe", afirma Darcy Ribeiro, porém "a unidade geográfica jamais funcionou aqui como fator de unificação porque as distintas implantações coloniais das quais nasceram as sociedades latino-americanas coexistiram sem conviver, ao longo dos séculos" (1986: 11-12).

Darcy Ribeiro vê nesta pluralidade, a maior característica de unidade. "O que sobressai no mundo latino-americano é a unidade do produto resultante da expansão ibérica sobre a América. Aqui, a metrópole colonialista teve um projeto explícito e metas muito claras, atuando de forma mais despótica" (1986: 17-21). Ou seja, o que é comum em todos os países latino-americanos, apesar de a origem do colonizador ser espanhola, portuguesa, holandesa, francesa ou inglesa, de haver maior ou menor presença indígena ou negra na população, é que em todas as nações se edificaram sociedades constituídas para servir de alimento, em primeiro lugar, para a acumulação mercantil, depois para as fornalhas da Revolução Industrial Inglesa e agora para o imperialismo (ou neocolonialismo) norte-americano.

Nesse cruel processo de exploração, formaram-se classes dominantes nativas da pior espécie porque, funcionam "como gerentes daquele pacto colonial e dessa reprodução cultural. Jamais formaram o cume de uma sociedade autónoma. Eram apenas um extrato gerencial que custodiava e legitimava a colonização. Uma vez independen-tizadas suas sociedades, o caráter exógeno dessas classes dominantes, forjado no período colonial, e seus próprios interesses induziram-nas a continuar regendo suas nações como cônsules de suas metrópoles" (RIBEIRO 1986:20).

A classe dominante cria dentro de cada nação latino-americana uma outra nação burguesa, como descreveu Octavio lanni. Por séculos, a escravidão e a aplicação do modelo económico primário-exportador produziram estruturas sociais rígidas em que se mesclam desigualdades sociais, económicas, políticas, raciais e culturais. Formaram-se castas que segregam índios, mestiços, negros, mulatos e brancos pobres.

Os agentes nativos dos impérios estão presentes nos centros económicos, nas capitais, nos bairros de classe média, nas minorias que alcançam o ensino superior de qualidade, nas cidades do litoral. E são os leitores, produtores e financiadores dos meios de comunicação da indústria jornalística.

As nações burguesa e popular não só são diferentes, como são opostas, antagónicas. As contradições herdadas do colonialismo não só se reiteram, como se aprofundam. Há entre essas nações uma luta de classes, em algumas partes explícita, e presente nas ruas e nos campos como na Bolívia, em outras explode de tempos em tempos, como no Brasil, quando o MST levanta seus acampamentos.

Brasil, Argentina, Equador, Nicarágua e tantos outros nomes dados às nações latino-americanas de fato correspondem a territórios, fronteiras, população, história, bandeira, hino, moeda, mercado, comunicações, heróis, santos, monumentos, ruínas, língua, literatura e produções culturais. Mas, para lanni, "são elementos dispersos e abstratos da sociedade nacional. Na maioria dos casos correspondem aos elementos que compõem o discurso do poder, dos setores dominantes. O discurso do poder não engendra a nação. Expressa principalmente o que é a nação burguesa" (IANNI, 1993:33).

Albert Memmi (1989) e Frantz Fanon (1979) vão além do colonialismo e estudam o neocolonialismo, influenciados pelo processo de luta pela independência das colónias (principalmente as francesas) na Ásia e na África após a Segunda Guerra Mundial. Fanon e Memmi assumem postura revolucionária, conclamando os "colonizados" a lutar contra a opressão colonial. Mesmo se tratando de casos particulares, a descrição que os autores fazem da relação colonizador-colonizado servem de parâmetro para mostrar a cisão entre a América Latina Oficial burguesa -herdeira direta dos privilégios do colonizador e a América Latina Popular-"caldo" que se formou do processo de colonização.

Albert Memmi chama de pequeno colonizador ao privilegiado das colónias, que não dispõe de vários hectares de terras e nem controla as administrações.

"Muitos são vítimas dos senhores da colonização. São por eles economicamente explorados, politicamente utilizados, a fim de defenderem interesses que não coincidem com os seus próprios [...] Se o pequeno colonizador defende o sistema com tanto empenho, é porque é mais ou menos seu beneficiário. [...] para defender seus interesses muito limitados, defende outros infinitamente mais importantes, dos quais é, aliás a vítima. Mas, enganado e vítima, nisso encontra também suas vantagens. [...]Tem problemas com as leis? A polícia e mesmo a justiça ser-lhe-ão mais clementes. Tem necessidade de serviços da administração? Ela ser-lhe-á menos embaraçosa (MEMMI 1989: 27)

É assim que operam as classes dominantes da América Latina Oficial até hoje. Por mais subservientes que sejam aos países centrais do capitalismo, essa condição lhes dá privilégios para garantir sua manutenção no poder local, mesmo que seja um poder muito menor que o das elites europeias e norte-americanas. A indústria jornalística, em especial a da América Latina Oficial, a serviço destas classes dominantes autóctone, também presta este papel de subserviência, uma vez que os principais veículos de comunicação pertencem à famílias que integram essas classes. No Brasil, por exemplo, o grupo Estado de S.Paulo é de propriedade da família Mesquista, proprietária de fazendas.

Aos não privilegiados do sistema colonial e neocolonial restam a opressão e o racismo. Porque a colónia jamais será transformada a ponto de se tornar uma metrópole. É preciso marcar posições na ordem internacional do capitalismo: há os centros consumidores e produtores de manufaturas e os centros fornecedores de mão-de-obra e de produtos primários. A desqualificação dos colonizados, por meio do racismo, é a pedra-base da relação colônia-metrópole. "Um esforço constante do colonialista consiste em explicar, justificar e manter, tanto pela palavra, quanto pela conduta, o lugar e o destino do colonizado" (MEMMI 1989: 68).

O colonizador cria o mito do colonizado sonso, ladrão e preguiçoso para justificar dois tipos de discurso: o da opressão e o discurso da missão civilizatório. Memmi diz que o colonizador usa o discurso da desqualificação para justificar a prática da ocidentalização e civilização, método empregado frequentemente pelos EUA ao longo da história e mais recentemente na "cruzada contra o terrorismo" por todo o globo.

Pela sua acusação, o colonizador institui o colonizado como ser preguiçoso. Decide que a preguiça é constitutiva da essência do colonizado. [...] Voltamos sempre ao racismo, que é bem uma substantificação, em proveito do acusador, de um traço real ou imaginário do acusado. [...] Graças a uma dupla reconstrução do colonizado e de si mesmo, procurará justificar-se: portador dos valores da civilização e da história, cumpre uma missão: tem o grande mérito de iluminar as trevas infamantes do colonizado. Que esse papel lhe traga vantagens e respeito nada mais justo: a colonização é legítima (MEMMI 1989: 72-79).

Desse processo de exploração vem a génese da cisão entre as Américas Latinas. "A Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes e por vezes racismos, tentou por todos os meios provocar e incrementar a estratificação das sociedades colonizadas" (SARTRE in FANON 1979: 10). Pelo raciocínio de Sartre, as colónias, ao se libertarem das metrópoles, se a revolução nacional triunfasse, seriam socialistas. Caso fosse detidas, eram as burguesias nacionais forjadas pelos colonos que tomariam o poder. Desta forma, mesmo se formando um Estado nacional, o poder continuaria nas mãos dos imperialistas.

Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra descreve o mundo dividido dos colonizados, fabricado pelos colonizadores.

O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colónias o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é soldado. Nas sociedades do tipo capitalista, o ensino religioso ou leigo, a formação de reflexos morais transmissíveis de pai a filho, [...] criam em torno do explorado uma atmosfera de submissão e inibição que torna consideravelmente mais leve a tarefa das forças de ordem. Nas regiões coloniais , ao contrário, o soldado por sua presença imediata mantém contato com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm a não se mexer. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado. A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos. Estas duas zonas se opõem [...] obedecem ao princípio da exclusão recíproca. A cidade do colono é sólida, iluminada, asfaltada, onde os caixotes de lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sonhadas. Os pés do colono nunca estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante próximo deles. A cidade do colono é uma cidade saciada. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiro. A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de que. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade ancorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. [...] Este mundo dividido em compartimentos, cindido em dois é habitado por espécies diferentes. [...] Nas colónias o estrangeiro vindo de qualquer parte se impôs como o auxílio de canhões e de suas máquinas. [...] A espécie dirigente é ates de tudo a que vem de fora, que não se parece com os autóctones (FANON 1979:28-30).

O colono hoje é o cidadão da América Latina Oficial.

O colonizado habita o restante da América Latina.

Desta divisão surge a América Latina Popular, quase que totalmente ausente do noticiário da grande imprensa. A grande imprensa apenas nota a América Latina Popular em situações de interesses específicos que reforçam a separação entre elas. Presente apenas na imprensa alternativa, proletária, a América Latina Popular é condenada a sua solidão não só pela imprensa, mas por todo o aparato forjado pela América Latina Oficial.

 

Imprensas orgânicas da América Latina Oficial e Popular

Como em toda luta de classes, cada parte tem seus organismos, seus intelectuais e seus órgãos de comunicação. Na América Latina, a nação burguesa domina os meios de comunicação. Ao entender o conceito orgânico, com base em Gramsci, como a expressão direta de uma classe e de seus interesses, pode-se dizer que cada "América Latina" tem a sua imprensa orgânica. A indústria jornalística - os jornais tradicionais, as revistas, as emissoras de rádio, de TV e os grandes portais da Internet são veículos orgânicos da América Latina Oficial. No caso brasileiro, mídias como Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, Veja, Isto É, Época, Jovem Pan, Bandeirantes, Rede Globo, TV Record e UOL

A indústria jornalística, portanto, é orgânica da América Latina burguesa, oficial. Os capitalistas proprietários dos meios de comunicação pertencem à classe dominante da nação oficial burguesa. Os jornalistas que trabalham nesses veículos, mesmo com raízes na América Latina Popular, ao se formar nas escolas superiores de jornalismo e conseguir empregos nas empresas privadas de comunicação, abandonam os óculos da América Latina Popular e passam a ver o mundo com os olhos da América Latina burguesa. Foi o caso da matéria publicada na edição de Veja de 10 de maio de 2000, entitulada "Tática da Baderna", em que o jornalista Eduardo Oinegue, egresso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, faz um texto ideológico de ataque ao MST, principal movimento social brasileiro.

O público-alvo destes veículos não está na América Latina Popular. As notícias publicadas pelos jornais têm como destino os cidadãos da América Latina Oficial burguesa. São esses cidadãos que podem comprar os produtos anunciados. Evidentemente, os anunciantes e os patrocinadores da indústria jornalísticas são as empresas capitalistas.

Na edição de 2 de março de 2005, a edição da revista Veja direcionada para a cidade de São Paulo, destaca na manchete "Jóias para a Casa" o crescimento e sofisticação das lojas de decoração para casa, em que um lustre chega a custar R$ 84 mil. Na matéria "Mistérios da Cidade" a reportagem mostra os lugares da cidade que vendem um copo com água por até R$ 5,50 como o restaurante Fazano e o Hotel Renaiscense.

A América Latina Oficial olha a América Latina Popular com um olhar diferente, mesmo que estejam separadas por uma rua. A América Latina Popular é considerada a periferia, o sul, o subalterno, o campo, a serra, o mestiço, a preguiça, a siesta e a fiesta, a rusticidade gaúcha, o caudilhismo, a violência, a barbárie. O bárbaro é sempre o outro, lanni identifica setores da sociedade latino-americana que trabalham sobre esse maniqueísmo. "São muitos que pensam e agem em termos de civilização e barbárie. Essa é uma fórmula bastante influente em meios intelectuais, políticos, militares e outros, latino-americanos, europeus e norte-americanos. Poucos se colocam as relações recíprocas entre os dois pólos do dilema. Não se interessam pelo contraponto escondido na oposição. Como se fosse possível a prosperidade, conforme o ideário liberal, sem a exploração do trabalho na indústria e na agricultura; o Estado de direito sem o monopólio da violência." (IANNI 1986: 15)

Essa divisão entre as Américas Latinas dentro da complexa América Latina é um dos principais fatores para explicar a ausência de notícias ou a generalização e banalização das informações. O que está ausente do noticiário é a América Latina Popular (proletária, camponesa, indígena, negra, mestiça). A América Latina Oficial, com todos os gabinetes presidenciais, suas produções culturais inseridas na indústria cultural de massa e seus números resultantes das negociações comerciais, já tem sua fatia garantida.

A América Latina popular é a periferia e como tal só entra no noticiário quando reforça essa condição. É esta a lei do jornalismo, discutida em todos as teses e dissertações desde que se começou a estudar Comunicação Social como ciência social aplicada. O jornalismo, a imprensa, nasceu com o capitalismo. Com a industrialização do início do século XX, no Brasil, como na América Latina, os jornais transformam-se em empresas:

Submetidos às mesmas leis gerais de competição que regem as relações económicas na sociedade capitalista moderna. Dentro das empresas há uma separação nítida entre o proprietário do jornal, representante da classe burguesa, e o jornalista, profissional geralmente recrutado entre as camadas médias da classe média urbana. O jornal começa a ser um dado económico, e não apenas político, graças à sua estreita vinculação com as demais atividades económicas através da publicidade. Em decorrência, o jornal, como empresa jornalística, passa a defender: a) os interesses económicos específicos do grupo a que está ligado seu proprietário; b) interesses económicos dos anunciantes que sustentam o jornal; c) interesses gerais da burguesia e do capitalismo; d)interesses políticos ligados a todos esses interesses económicos, tanto gerais como específicos" (ABRAMO 1997: 282-283).

Essa análise de Abramo auxilia a explicar a ausência da América Latina do jornal. Basta considerar que a América Latina popular não está em nenhum dos interesses mencionados. Perseu Abramo, porém, chama a atenção para a contradição entre a conduta efetiva do jornalista e a conduta que ele deveria ter ou pela qual deveria lutar.

"Na grande maioria dos casos" afirma Perseu Abramo "o jornalista das grandes empresas jornalísticas abdica de tomar consciência da classe social a que pertence". Apesar de ser um trabalhador assalariado e, portanto, vender sua força trabalho em troca de um salário, o que o faria defender os interesses dos mesmos integrantes de sua classe, o jornalista lida com representações ideológicas, ou seja palavras, informações, dados, opiniões, atitudes. Muitas vezes essas representações ideológicas, produto do seu trabalho, são as mesmas adotadas pela empresa proprietária do jornal. Assim, o jornalista tem um duplo papel: "ele vende sua força de trabalho para a defesa dos interesses da burguesia e passa a ser indiferente, quando não hostil, aos interesses do proletariado." (ABRAMO 1997: 284)

A América Latina Popular também tem os seus veículos orgânicos: Caros Amigos, Brasil de Fato, Agência Carta Maior, Aditai, ALAI, Voz Rebelde, Red Por Ti América, Jornal Sem Terra, Revista Sem Terra, Revista Fórum, América Libre, Vozes da Terra entre outros. É a imprensa das classes subalternas, também chamada de imprensa proletária ou alternativa. Nas páginas dessa imprensa está registrada a história das lutas populares, as greves operárias, as revoluções no campo, as guerrilhas, os movimentos sociais, a cultura popular latino-americana.

Quando a indústria jornalística analisa a América Latina popular o faz em momentos bastante singulares, dentro dos critérios de noticiabilidade: uso de valores-notícia1 como negatividade, conflito, inesperado, presença ou não de correspondentes estrangeiros, origem das agências de notícia, entre outros. Exemplo: a cobertura dos furacões no Atlântico Norte. A cada nova formação de uma tempestade, as notícias levam em consideração os preparativos e as consequências nos EUA, contando os dias que faltam para o furacão atingi-los, enquanto que os mortos e prejuízos dos países latino-americanos se tornam apenas estatística.

Portanto, se na indústria jornalística a América Latina está solitária -para utilizar uma figura de Gabriel Garcia Márquez-, a saída pode estar no desenvolvimento de novas redes de comunicação alternativas à indústria jornalística. Essa ação passa pelo processo de educação de jornalistas e militantes sociais para a formatação de mídias que contemplem também a América Latina, em especial a América Latina popular.

Desde o início da imprensa, as elites controlaram os processos de comunicação e os utilizaram como forma de dominação. Para se opor a essa dominação, é preciso que as classes populares passem a organizar seus próprios meios de comunicação, como interpreta Emir Sader.

[...] a classe trabalhadora também deve construir -ao lado de sua força económica, social e política— o seu poder ideológico, para poder se constituir como articuladora de uma força hegemónica alternativa. Vale também para as classes dominadas e exploradas a necessidade de organizar não apenas sua força, mas também a capacidade de que sua ideologia, seus valores, sua visão de mundo, possam conquistar outros setores populares da sociedade (SADER 2005: 8).

Para Cicilia Maria Krohling Peruzzo (1999), nos últimos anos, as "classes subalternas" compreenderam a dificuldade de participação efetiva nos meios de comunicação da indústria jornalística. No Brasil, pode-se citar o MST, que, diante da intensa campanha de criminalização promovida pela mídia massiva, criou seus próprios meios de comunicação: jornal para a base, revista e site para os simpatizantes. O EZLN, no México, foi um dos pioneiros a utilizar a Internet como forma de driblar a censura da mídia massiva e divulgar as lutas que aconteciam na selva. Esses dois movimentos portanto, deixaram de ser simples consumidores e passariam a ser agentes de produção de comunicação.

A ampliação do nível de participação dos movimentos sociais na comunicação leva ao fortalecimento do processo de comunicação contra-hegemônica. Os meios de comunicação desenvolvidos pelos movimentos sociais têm, como categoria de seleção dos estudos dos problemas da América Latina "Popular": erradicação da fome e da pobreza, implantação da reforma agrária, desenvolvimento industrial sustentável, preservação da fauna, da flora e dos recursos minerais, a eliminação da corrupção, o fortalecimento das culturas, a preservação dos folclores e afirmação de políticas nacionais que não se submetam às intervenções estrangeiras com interesses exploratórios.

Consequentemente, a América Latina popular deixaria de ser periferia da comunicação e passaria a ser o ator principal. Essa comunicação sobre a América Latina deve não só reconstruir a história do continente, mas tirar da sombra ações que foram esquecidas pela indústria jornalística. Em dezembro de 2007, por exemplo, completaram-se 100 anos do massacre da escola de Santa Maria de Iquique. Não fosse pela iniciativa da imprensa alternativa, a data passaria em branco na indústria jornalística.

A comunicação alternativa, portanto, tem a tarefa de reescrever a história não só pela versão dos vencedores, mas também pela dos vencidos, e, principalmente, pode debater questões e propor soluções que contemplem essas necessidades políticas apontadas.

Uma atuação anterior, no entanto, é mais urgente que reforçar os meios de comunicação da América Latina Popular. Ou seja, é necessário que as nações latino-americanas rompam com as políticas de subserviência que suas elites se acomodaram a fazer. A integração da América Latina é a extinção da fome e da pobreza, é a realização da reforma agrária, do desenvolvimento sustentável que preserve a fauna, a flora e os recursos minerais e humanos (principalmente), do fortalecimento das culturas e preservação dos folclores.

 

Considerações finais

Na indústria jornalística, a América Latina não tem espaço nem qualitativo e nem quantitativo. O crescimento dos meios de comunicação em diferentes mídias em consequência dos avanços da Internet, não foi acompanhado, ainda, de profundas mudanças na concentração e lógica dos meios da indústria jornalística, como demonstrou Denis de Moraes (2009). "A multiplicação de produtos e serviços multimídias, põe-se a serviço de lógicas corporativas que convertem variedades em grandes quantidades lucrativas".

Esses novos meios tecidos pelos movimentos sociais, cansados de guardar silêncio diante da indústria jornalística acontecem pela América Latina graças a iniciativas, muitas vezes baseadas na prática social participativa que compreendem que a contra-hegemonia é possível. As formações existem, é preciso estudá-las.

 

Notas

1. Os valores-notícia, como mostra Nelson Traquina, são critérios de noticiabilidade, que colocam ordem no tempo e no espaço, adotados pelos jornalistas para dar conta do ritmo industrial que o jornalismo adota diante da imprevisibilidade dos acontecimentos do cotidiano. (SOUSA 2002).

 

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Recepción: 25/08/2009

Aprobación: 22/12/2009

 

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