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Punto Cero

versión impresa ISSN 1815-0276versión On-line ISSN 2224-8838

Punto Cero v.15 n.20 Cochabamba  2010

 

 

 

Identidades Culturaís, Memória e Cidadanía nos Processos Comunicacionais Kaingang

 

Cultural ldentity, Memory and cítízenship ín the Kaíngang's communication processes

 

 

Carmem Rejane Antunes Pereira

Doutoranda em Ciências da Comunicação da UNISINOS/RS/Brasil

carmemrs@uol.com.br

 

 


Resumo

O objetivo deste texto é apresentar algumas reflexões oriundas de pesquisa em andamento que trata das relações entre memória e configurações da identidade cultural nos processos comunicacionais Kaingang. As reflexões têm por base as proposições teórico-metodológicas das mediações socioculturais e contribuições da história oral, para investigar os lugares indígenas nas construções midiáticas e nas apropriações operadas por interlocutores situados nos fluxos da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS/Brasil).

Palavras chave: indígenas, mídias, identidade cultural, cidadania


Resumen

El objetivo de este texto es presentar algunas reflexiones oriundas de la investigación en desarrollo que trata de las relaciones entre memória y configuraciones de la identidad cultural en los procesos comunicativos Kaingang. Las reflexiones tienen como fundamento las proposiciones teórico-metodológicas de las mediaciones socioculturales y contribuciones de la historia oral, para averiguar sitios indígenas en las construcciones relacionadas a los médios de comunicación y en las apropiaciones operadas por interlocutores ubicados en los flujos de la Región Metropolitana de Porto Alegre (RS/Brasil).

Palabras clave: indígenas, médios de comunicación. identidad cultural, ciudadanía


Abstract

The objective of this text is to present some reflections deriving of in progress research on the relations between memory and configurations of cultural identity in the Kaingang's communication processes. The reflections are based on the theoretical-methodological proposals of sociocultural mediations and contributions of oral history, to investigate the Indigenous places in the media-constructions and in the appropriations operated by interlocutors located in the flows of the Metropolitan Region of Porto Alegre (RS/Brasil).

Keywords: indigenous, media, cultural identity, citizenship


 

 

Introdução

O texto apresenta reflexões teórico-metodológicas de pesquisa em andamento, focalizando as configurações da identidade cultural no âmbito dos processos comunicacionais Kaingang. Tais configurações estão vinculadas à problemática da cidadania, enquanto demandas oriundas das lutas contra a desigualdade e a exclusão social e cultural (SANTOS, 2005), contextualizadas por grupos indígenas situados nos fluxos da Região Metropolitana de Porto Alegre. Para compreender essas demandas, consideram-se as mediações sociais, históricas e políticas que desencadeiam a visibilidade midiática dos lugares indígenas, entendendo estes como espaços de sobrevivência material e simbólica.

Kaingang é o nome da etnia indígena com maior população no Sul do Brasil. Segundo estimativas do Instituto Socioambiental (ISA, 2010), a população é formada por mais de 30 mil pessoas, considerando-se aquelas que vivem em 32 Terras Indígenas (TI)1, aquelas que vivem nas zonas urbanas e rurais próximas as TIs ou ainda aquelas que passaram a viver em grandes cidades.

A variação das informações demográficas é resultante da precariedade dos dados obtidos pelos censos, visto que as famílias kaingang vivem em mudança contínua entre comunidades/aldeias. Além disso, o crescimento vegetativo, bem como o índice de mortalidade infantil, é considerado elevado. De modo geral, quando os dados dos censos são divulgados, os mesmos já se encontram defasados.

Os Kaingang pertencem à família linguística Jê, a qual está inserida no grande tronco linguístico Macro-Jê, formado por seis famílias linguísticas. Culturalmente estão vinculados às sociedades Jê-Bororo, especialmente aos setentrionais centrais Akwén, Apinajé, Kayapó, Kren-Akôre, Suyá e Timbira. Juntamente com os Xokleng compõem o grupo de sociedades indígenas meridionais, cujas aldeias ou famílias que fazem parte das suas redes de parentesco estão localizadas em São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Estudos arqueológicos apontam que o seu processo histórico-sociocultural nesta região remonta há dois mil anos (Cf. SILVA 2008:30)

A organização social Kaingang foi estudada por vários autores2, destacando o dualismo desta etnia, que se caracteriza pela existência de duas metades exogâmicas, patrilineares, assimétricas e complementares, designadas como Kamé e Kainru-kré. Silva (2005) entende que as patrimetades são apenas um dos aspectos de toda uma concepção dual do universo, fundamentada em mitos ancestrais. Todos os seres, objetos, fenómenos naturais são divididos em duas categorias, sendo uma vinculada ao gémeo ancestral Kamé e outra ao gémeo ancestral Kainru-kré.

A relação dialética de oposição e complementaridade entre os heróis míticos se expressa em distinções físicas e emocionais como Kainru "é de caráter fogoso, capaz de decisões rápidas, mas é instável; seu corpo é esbelto e leve"; por outro lado, Kamé "é [...] pesado, de corpo como de espírito, mas é perseverante" (SILVA 2005: 90). Também se verifica na pintura corporal utilizada em rituais e manifestações, sendo a característica de Kainru as manchas pintadas como marcas redondas; o padrão de Kamé, em marcas de listras compridas.

A matriz mitológica Kaingang cria todo um campo semântico que permeia a visão de uma sociedade ideal, construída por diferenças binárias, mas apontando para a relação harmoniosa entre mundos concebidos diferentemente.

Exemplo dessa matriz fundante é representado pela instituição do cunhadio masculino, configurada pelas relações entre os iambrés de metades opostas que desempenham papéis ideais de amizade, ajuda mútua, cooperação e complementaridade. O iambré é um companheiro, de quem se espera uma relação de camaradagem.

Nessa concepção do cosmos, atua também a instituição do Kuiã, enquanto elemento que intermédia as forças entre natureza e sociedade, o "matão" e a 'inteligência'. O Kuiã é investido pelo poder que vem do mato, o iangrê, ser que dá poder ao kuiã (xamã), domesticando esta força para curar e prevenir.

Da natureza, também vêm os nomes masculinos e femininos kaingang, ligando a pessoa aos poderes imateriais oriundos do mato. As nominações tradicionais estão sendo retomadas pelos Kaingang, convivendo com os nomes não-indígenas, portugueses e cristãos, como foi possível se perceber junto a vários interlocutores, especialmente aqueles que vivem na região metropolitana de Porto Alegre.

Outra instituição associada a esta etnia diz respeito à organização política das comunidades através das lideranças indígenas do tipo cacique -o pai- reconhecida pela maioria dos Kaingang com quem dialogamos. A nomenclatura dos cargos que compõem essa liderança traz marcas das políticas do extinto Serviço de Proteção ao índio (SPI)3; entretanto alguns atributos podem ser entendidos a partir das configurações atuais, que dão conta dos processos de organização política contemporâneos. A idade, com acento nos mais velhos, não é um atributo imperioso, mas sim o fato de saber falar e entender a língua materna e a capacidade que articula a ideia de "força" à qualidade de "querer bem a todos", isto é, atuar como líder político e diplomático, em defesa da comunidade.

 

1. O contexto da recepção e as mediações socioculturais

No contexto de fluxos humanos marcados por matrizes ancestrais -como a língua, os nomes tribais e as marcas clânicas - desenvolve-se a presente pesquisa de recepção, considerando as itinerâncias contemporâneas como uma das mediações socioculturais relevantes para investigar e compreender as configurações da identidade cultural nas apropriações midiáticas operadas por indígenas Kaingang situados nos fluxos da região metropolitana de Porto Alegre.

A proposição teórico-metodológica das mediações oferecida por Martín-Barbero (2003) permite pensar a comunicação desde a vigência de matrizes culturais e dimensionar a recepção em perspectiva histórica (Cf. BONIN 2008: 140). Neste caminho, a recepção é concebida como processos de produção de sentido gerados pelos públicos, para o que é necessário considerar, entre outros aspectos, as marcas das experiências vitais e sociais dos grupos e a possibilidade de situá-los na multiplicidade da "história pessoal, familiar, de classe, de etnia, de região, de competências e de concepções" (MALDONADO 2000: 4).

Na especificidade desta pesquisa as mediações socioculturais são articuladas em concomitância com a espessura que os meios adquirem enquanto expansão da cultura midiática, como matriz organizadora do sentido (Cf. MATA 1999: 84), e configuradora do ethos midiatizado como discute Sodré (2006). Com essa articulação definem-se os processos de comunicação como processos de hibridação (Cf. GARCÍA -CANCLINI 2002: 2) em que a historicidade dos públicos pode ser compreendida pela ação de diversos tempos e a sua especificidade nas relações hegemónicas que definem a comunicação como relações de dominação e de resistência desde dentro da cultura.

Nessa perspectiva, também é importante compreender as apropriações dos receptores como práticas, a partir de lógicas específicas e modos de fazer que correspondem a jogos de força, onde a noção de táticas se revela em redes de antidisciplina e desvela astúcias milenares como propõe Certeau (2002). As práticas apontam para as relações de consumo dos produtos midiáticos, indicando maneiras de usar, negociações e rejeições, atentando para as padronizações, para aquilo que é constituído enquanto habitus4, mas também para aquilo que se caracteriza como não-funcional, não-reprodutivo.

A identificação das mediações é demarcada no âmbito de movimentos exploratórios iniciados em 2006, tendo como estratégia o levantamento de pistas sobre o uso dos meios de comunicação, a partir de entrevistas realizadas com interlocutores que se auto-atribuem Kaingang, residentes na região metropolitana de Porto Alegre há mais de dez anos. A maioria dos entrevistados forma unidades familiares, morando em núcleos domésticos ou em aldeias formadas pelos deslocamentos oriundos das "terras de origem", instituídas e demarcadas ao longo dos séculos XIX e XX.

A itinerância compõe, assim, as mobilidades do sujeito em suas táticas de sobrevivência e suas práticas de ocupar o espaço, bem como nas suas estratégias de se construir como grupo étnico, enquanto fronteiras que são mobilizadas no processo de memória coletiva para fortalecer a identidade social, tais como a língua, as marcas clânicas e os nomes tribais. Falar e entender a língua kaingang são elementos de distinção para com os fóg (os brancos) e também nas relações intraculturais, em que a categoria nativa kaingang-p5 é construída para salientar aquele ou aquela que fala a língua e mantém o "costume".

Essas fronteiras ativadas pela memória coletiva, compreendidas no sentido oferecido por Barth (1998), são mais ou menos realçadas, conforme as situações que promovem a visibilidade social e também funcionam como capital simbólico nas relações que sustentam os coletivos Kaingang, sejam eles grupos familiares ou aldeias, constituindo configurações espaciais de uma organização política diferenciada.

Na qualificação do contexto, considera-se a mobilidade indígena como resultante de matrizes de longa duração e também das forças que tecem o presente, quando não só os homens mudam de lugar, mas também os produtos, as imagens e as ideias. Ou seja, a itinerância diz respeito aos deslocamentos indígenas, considerando o "mundo do movimento" (SANTOS 2004: 328) em que a noção de residência e lugar de trabalho não se esvai, pois formam o entorno vital, os quadros de vida que têm peso na produção do homem.

 

2. Memória e identidade na esfera pública

Ao identificar a memória como outra mediação relevante para compreender as configurações da identidade cultural Kaingang, nos processos de visibilidade social dos lugares indígenas, é necessário pensá-la como fenómeno histórico e social, brotado da aceleração do presente e como marca de uma sociedade ansiosa pelo passado como sugerem Le Goff (1990) e Huyssen (2004). Perspectiva essa que remete às inquietações de Benjamin (1996) sobre a experiência do progresso moderno, sustentada pela filosofia da novidade, mas igualmente estimula a pensar a construção da identidade como fonte de sentido para o sujeito enquanto indivíduo e ator social como discute Castells (2002), em processos geradores de desejo pelo passado, "que não se esgotam na evasão moldada pelo mercado, e sim expressam os reclamos de nossos corpos por ocupar menos espaço e mais lugar" (MARTÍN-BARBERO 2006: 71).

Tais reflexões levam em conta a economia informativa que fabrica o presente e a expansão e as transformações da memória, em concomitância com os processos de midiatização societária, pelos quais as mídias também constituem as significações sociais, seja como representações ou como expressão de realidades culturais. Daí porque os lugares indígenas podem ser pensados nos seus entrecruzamentos com as mídias, observando registros e suas ancoragens nas temporalidades que emergem nas histórias de vida comunicacional.

A investigação dessas ancoragens se ampara nas contribuições metodológicas da história oral buscando alguns aportes na noção de organização da memória oferecida por Pollack (1992). "A priori, a memória parece ser um fenómeno individual" afirma este autor, para ressaltar com Halbwachs (2006), que a memória deve ser entendida, sobretudo, como "um fenómeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes" (POLLACK 1992: 2).

Pollack (1992), entretanto, também lembra que junto a essa mutabilidade existem marcos, tais como acontecimentos, personagens e lugares que podem servir como critérios para investigar a memória desde uma dimensão pública, comemorativa, individual, sem que isso represente uma separação estanque, mas dimensões de um mesmo processo.

Os fenómenos da memória também podem ser compreendidos como produtos humanos externos ao indivíduo e acessíveis a coletividade. A memória não é só um acervo de conhecimentos interior a cada indivíduo, ela se projeta ao exterior, tornando-se compartida e intersubjetiva (Cf. MONTESPERELLI 2004: 15). Essa projeção, esse compartilhamento que caracteriza a memória coletiva, faz parte de todas as sociedades humanas e também pode ser remetida à ideia de próteses, noção que Leroy-Gourhan, citado por Montesperelli (2004), utiliza para pensar os elementos que solicitam ou potencializam as lembranças ou memórias individuais, tais como os textos, imagens, testemunhos, arquivos, etc.

Retomando a noção de lugares de memória discutida por Nora (1991) pode-se pensar essa noção, a partir de Pollack (1992), no que eles se relacionam com as memórias e as identidades dos diferentes e múltiplos grupos sociais, enquanto valores disputados e compartidos nos processos que põem em questão os reconhecimentos de alteridades históricas. Por esse prisma, a memória desempenha um papel fundamental na construção da identidade, pois se configura em:

[...] um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLACK 1992: p.5).

O fato de se referir aos grupos e não a toda sociedade faz com que a memória social abarque uma multiplicidade de categorias, tais como lugares, identidades, culturas, interesses, atores, instituições e várias outras, e que sua compreensão torne-se intrinsecamente plural: "é o resultado, nunca adquirido definitivamente, de conflitos e compromissos entre vontades de distintas memórias" (MONTESPERELLI 2005: 15) que se enfrentam na esfera pública, competindo pela hegemonia de discursos plausíveis e relevantes dentro do conjunto da sociedade.

 

3. Os lugares Kaingang e seus registros nas espacialidades midiatizadas

Os lugares indígenas são ativadores da memória grupai e também configuram os cenários que oferecem uma ideia do trabalho de organização da memória e da exteriorização e da exacerbação das identidades (Cf. SILVA 2008: 30). Enquanto comunidades políticas se tornam objeto de notícias, relatos, depoimentos em vários dispositivos midiáticos, fabricando registros, cujos efeitos de sentido estão relacionados às condições de produção em que são gerados e demarcando relações interculturais em diferentes espacialidades midiatizadas.

Exemplo disso está em chamada de capa de Zero Hora6, edição de 13 de abril de 2004, que noticia a ocupação desencadeada por 23 famílias kaingang no Parque Natural Morro do Osso7, unidade de conservação municipal, localizado na zona sul de Porto Alegre, e justificada por ser a área um território tradicional. Comparando com outras construções midiáticas do Kaingang, no mesmo jornal, durante o mês de abril, em cinco anos de observação, a foto que estampa a manchete e algumas outras que são publicadas nos espaços das suítes, sugerem que se os conflitos de terra são eventos relevantes para garantir a visibilidade midiática, há marcas desse processo que organizam o sentido do relato através de elementos diferenciais, tais como as lanças, os cocares e pinturas faciais que marcam o corpo indígena na espacialidade da notícia.

Tais elementos que demarcam a corporeidade indígena dão ideia das maneiras como as demandas kaingang são interpostas no espaço midiático, utilizando códigos que funcionam no espectro de estereótipos, permitindo reconhecer o "índio" e, ao mesmo, dando conta da sua especificidade em movimentos de luta pela terra, enquanto direito básico de existência.

Nesse processo, as coletividades indígenas também se tornam objeto de relatos discriminatórios, produzidos no acirramento de conflitos que envolvem interesses fundiários e mobiliários. Concomitantemente, provocam a reprodução de velhos e novos preconceitos que se atualizam em falas tais como as sediadas pelo portal da Associação dos Moradores do Sétimo Céu, entidade que reúne proprietários de alta renda no Morro do Osso e também em blogues de seus dirigentes. Em julho de 2004, no seu blogue, a internauta Tenini (2004), ao narrar suas "observações" sobre a Aldeia relata o seguinte:

[...] sobre o trabalho, quase não constatamos as presenças de índios mais velhos do sexo masculino e sim, de jovens que, às vezes, tramam balaios e outras, jogam baralho. Sobre os homens adultos, fomos informadas que andavam em reuniões na FUNAI ou vendendo as quinquilharias, como camelos. [...] foram mostrados colares e pulseiras sem nenhuma criatividade [...] não verificamos as tão propaladas [...] tradições e hábitos indígenas [...] uma das índias pareceu-nos muito inteligente e esperta [...] a visão do Bagé [e não Pajé] [...] houve depredações [...] retiradas de cipós e um rastro de sujeira por onde ficaram [...] (grifei).

Outro exemplo está no blogue Porto Imagem, que é mantido por profissionais de várias áreas, entre eles jornalistas, que se definem como habitantes e fãs de Porto Alegre. Uma das suas discussões principais é o turismo (PORTO IMAGEM, 2008):

Turismo de preservação ecológica -Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, não tocar na Amazónia não é necessariamente, a única maneira de preservá-la [...] em Porto Alegre [...] santuário ecológico [...] hoje invadido por índios aculturados, que instalaram suas casas com rede elétrica, televisão, proíbem [...] com hostilidade e o pior: outrora gente silvícola que vivia de harmonia com a natureza, os índios aculturados estão desmatando a mata Atlântica como nunca se viu [...] (grifei).

Esse cenário permite observar a complexidade das lutas indígenas, desde sua presença na cidade, suas reivindicações por território e os conflitos interculturais surgidos em uma sociedade onde o direito à existência também passa pelo direito a ouvir e ser ouvido, fazer-se visível socialmente (Cf. MARTÍN-BARBERO 2006: 68).

Nesse sentido, o Kaingang, como sujeito político, ao mesmo tempo em que é invisibilizado em falas que constroem o índio de asfalto preconizando o índio remoto, também fabrica registros dos seus lugares, os quais podem ser exemplificados a partir de vídeos que relatam encontros de Pajés no Morro do Osso ou expressam as reivindicações de aldeias, divulgados pelo site You Tube8.

Os diferentes registros nas múltiplas espacialidades midiáticas permitem, dessa forma, pensar a aldeia enquanto lugar midiatizado, o que não significa transformar essa relação em um fetiche^, e nem esquecer as dinâmicas culturais no âmbito de movimentos sociais e suas mobilizações reticulares (Cf. MATTELART, NEVEU 2004: 186). Dessa forma, investiga-se a identidade cultural, considerando as interações entre comunidades indígenas e mídias, a partir de processos comunicacionais que põem em jogo demandas socioculturais de alteridades históricas.

 

4. Os lugares, as memórias e as demandas comunicacionais

Nesse cenário, a Aldeia Morro do Osso também pode ser analisada como um acontecimento, indagando como os lugares indígenas tornam-se objeto de notícias e como estas são apropriadas pelos indígenas que vivenciam o cotidiano da aldeia. Oriunda dos fluxos que caracterizam os deslocamentos, as mobilidades kaingang10, e fortalecedora da rede social étnica, a Aldeia é considerada terra ancestral pelos seus moradores, ou seja, está fundada no "caminho dos antigos", argumento que organiza a fala dos interlocutores, como registrado em entrevista realizada em 2008 com o cacique Valdomiro Xe Vergueiro;

Os velhinhos [...] vinham de Nonoai [...] falar com os governadores aqui em Porto Alegre [...] buscar recurso para a comunidade deles. [...] eles vinham a pé, [...] a nossa vinda aqui pro Morro do Osso foi intermédio dos nossos velhinhos que contavam as notícias pra nós. Que goj-kafã-tu, [rio grande, O Guaíba] que era do lado de cá. Eles diziam que tinha uma área pro lado de lá do goj-kafã-tu, que quer dizer um rio sem fim, muito grande. Isso ta na internet isso aí. E pro lado de lá eles diziam pra nóis que tinha uma área Ran Kri Kuka [...]. E daí o branco disseram que era Morro do Osso, [...]. Da onde eles vinha e ficavam ali vinham ali pra buscar recursos com os governadores, nas reunião [...] ali onde tem o pé de Deus [...] Uma pedra muito grande, eles ficavam por ali.

Como se pode perceber, nesta fala, a aldeia vai se configurando como um acontecimento que está ancorado nos empenhos da memória grupai para criar atualizações no presente, quando as "notícias" de ontem (dos velhinhos) são mediadas pelas matrizes que dão existência ao goj-kafã-tu como património cultural e também são mediadas pelos meios de comunicação.

Considerando esses empenhos, investiga-se a construção histórica dos públicos, dimensionando o receptor como sujeito de demandas comunicacionais, nas quais, é preciso considerar a imagem pública do indígena, desde práticas que convergem para sua visibilidade midiática, sua imagem transposta aos meios de comunicação (Cf. SILVERSTONE 2004: 42) e as relações de alteridade produzidas nas apropriações do sujeito. Essa questão pode ser percebida na fala de Francisco Rokàg dos Santos, morador da Aldeia Morro do Osso, em entrevista realizada em 2007:

Às vezes a gente vê no noticiário [...] às vezes passam coisas reais e às vezes os próprios que filmam fazem ao contrário [...] aqui aconteceu pra nós [...] no primeiro dia [...] quando nós fomos despachados de dentro do morro pra cá eu chamei repórter [...] teve repórter que contou, mostrou, mas teve outros que fizeram mostrando outras páginas. Então o trabalho que a gente vê na televisão, quando a gente vê um irmão nosso lutando, sofrendo, que eu vi lá num resgate lá em Mato Grosso, a gente fica triste. A gente gosta de ver também, ser mostrado que é real para o cidadão, mostrar pro governo, no rádio também.

Nos processos que promovem a visibilidade dos lugares indígenas, como estratégia dos atores, a transposição das imagens nos padrões hegemónicos do jornalismo televisivo, gera a desconfiança dos receptores frente a notícias recorrentes dos excluídos e a reivindicação de outros sentidos nas narrativas que contam os seus lugares. É o que demonstra ainda a fala de Francisco Rokág dos Santos, na mesma entrevista:

[...] a gente tava lutando pela terra, tá certo que a gente tá sofrendo, mas a luta pela terra, de querer o que é nosso, [...] mas não colocaram como luta, colocaram como gente da rua, perdido na rua [...] porque quando a gente quer mostrar a nossa cultura a gente chama o repórter, porque nós temos comida diferente, porque mostrar os índios comendo folha e depois disseram que nós estava morrendo de fome. Nossos avôs já comiam isso, e no noticiário disseram que nós estava sem comida comendo folha, mas é a nossa própria comida.

Nas relações entre mídia e comunidades indígenas, é possível compreender a midiatização como um processo que demarca os vínculos entre culturas globais e locais. Em outras palavras, não é uma construção que emana de fora, somente nos meios, e muito menos com preponderância de um meio, mas também surge de dentro das transformações da cultura local, nos seus entrecruzamentos com o que se entende por cultura midiática, desde a intervenção dos meios na configuração das práticas sociais, que na sua dimensão significativa evidenciam peculiares interações e organizam o sentido do direito de ver e ser visto em diferentes contextos históricos.

Nesse caminho, entendem-se os lugares de memória não restritos aos espaços físicos ou aos monumentos; também remetem a um conjunto de elementos que mediam a construção das identidades culturais, como pertencimento e projeto (Cf. CASTELLS 2002: 24), imbricada aos processos de midiatização societária. Ao mesmo tempo, pode-se refletir sobre o ethos midiatizado em outras escalas que não somente a do consumo de produtos midiáticos, mas da cidadania, na construção histórica dos públicos, através das marcas da cultura midiática nas vivências do receptor/ator, problematizando os cruzamentos entre distintas e plurais culturas, em contextos específicos. Desse modo, para compreender as configurações da identidade cultural nos processos comunicacionais Kaingang, consideramos a identidade cultural como construção híbrida na perspectiva oferecida por García-Canclini (2002) e Hall (2003), investigando peculiares modos de narrar os lugares indígenas em diferentes espacialidades midiatizadas, mediados pelas tessituras dos fluxos humanos, das diásporas contemporâneas e dos movimentos étnicos de luta pela terra.

 

Notas

1. Instituto Socioambiental (ISA). Terras Indígenas são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e definidas pela Constituição Federal, como terras "por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação de recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições". Sempre que uma comunidade indígena ocupa uma área com base nesse direito, o Poder Público também está obrigado a promover o reconhecimento através do procedimento de demarcação (identificação, aprovação, contestação, declaração, demarcação e homologação). Embora a Constituição tenha estabelecido prazo para demarcação de todas as Tis, muitas se encontram em situação indefinida e a grande maioria sofre com invasões de mineradores, posseiros; outras são cortadas por rodovias, ferrovias e inundadas por usinas hidrelétricas.

2. Entre eles, Silva (2005) cita Mabilde (1983) e os estudos no século XX de Nimuendaju (1987 [1914]), Horta Barbosa (1947), Baldus (1937 e 1947), E. Schaden (1953), Métraux (1946), Becker & Schmitz (1967), Becker (1976), Veiga (1994, 2000) e Crépeau (1994; 1995).

3. O SPI foi fundado em 1910 e extinto em 1967, devido a irregularidades administrativas e denúncias sobre massacres de grupos indígenas, dando lugar a FUNAI, criada no mesmo ano, durante o governo militar. (Cf. LAROQUE 2005: 52)

4. Conceito apresentado por Bourdieu (2004) para se referir aos esquemas mentais que orientam a percepção, ação e valorações ou classificações realizadas pelos sujeitos, a partir dos processos de interação social.

5. Kaingang-pé forma as bases das categorias nativas "índio puro" ou "mestiço". Kaingang-pé é traduzido como índios de tradição e está associado à força e à permanência cultural indígena nos processos de miscigenação. Freitas explica esse termos no conjunto das redes de reciprocidade e espaços inter-societários das cidades, que ainda fragmentados são sistematicamente interligados pelo fluxo eco-social indígena (Cf. FREITAS 2006: 226)

6. O jornal Zero Hora pertence ao Grupo RBS, grupo que opera no Sul do Brasil e concentra diversos outros meios e investimentos. Além da RBS TV, afiliada à Rede Globo, possui os jornais de maior circulação nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, além de outros em cidades do interior desses dois estados.

7. ZERO HORA. índios procuram solo sagrado na capital. Porto Alegre, 13 de abril de 2004. Ano 40, n, 14.113.

8. No http://br.youtube.com/ Cacique Kaingang pede políticas públicas e Ritual em Tribu Indígena

9. A potencialidade de pensar a cultura midiática enquanto "práticas que intervém na modelação social" significa não dotá-la "de uma capacidade explicativa que transforme em midiático tudo o que se toca". (Cf. MATA 1999: 87)

10. O termo deslocamento é utilizado por Aquino (2008) para se referir aos movimentos populacionais do grupo étnico que, em alguns casos, podem ser resultante dos conflitos internos em uma aldeia anterior. Esse movimento teria originado a Aldeia Morro do Osso, uma "terra antiga" (ga si) "perdida" para os brancos (fóg), onde existe um sítio arqueológico de tradição Guarani e onde os Kaingang coletavam matéria prima para confeccionar artesanato (Cf. AQUINO 2008:42).

 

Referências Bibliográficas

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Recepción: 25/08/2009

Aprobación: 22/12/2009

 

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